Audiências concentradas promovem direitos no sistema socioeducativo

Atualmente, 16 estados brasileiros adotam a metodologia, e outros oito estão em processo de implantação com apoio técnico do programa Fazendo Justiça, resultado de parceria entre PNUD e CNJ

25 de April de 2023
Crédito: Isabella Lanave/Fazendo Justiça

A participação de crianças e adolescentes em processos judiciais que os afetem está determinada em diferentes normas internacionais, como na Convenção sobre os Direitos da Criança, para que possam se expressar livremente sobre assuntos a eles relacionados e tenham suas opiniões ouvidas e consideradas. O mesmo vale para adolescentes que ingressaram no sistema socioeducativo. Desde 2019, o PNUD e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no âmbito do programa Fazendo Justiça, vêm fomentando a realização de audiências concentradas para que o Judiciário avalie a necessidade de manter medidas socioeducativas em unidades de internação ou semiliberdade. Essas audiências têm a importante participação desses adolescentes e de seus familiares. 

A partir de levantamento de boas práticas para a qualificação do sistema socioeducativo, a equipe técnica do Fazendo Justiça identificou que alguns magistrados e magistradas já estavam usando esse formato para a reavaliação das medidas socioeducativas, mas sem regulamentação específica. Desde então, um plano para institucionalização e fortalecimento da política foi desenvolvido com a aprovação da Recomendação CNJ nº 98/2021, que indica a realização de audiências concentradas nas unidades socioeducativas a cada três meses. Atualmente, dezesseis estados brasileiros adotam a metodologia, e outros oito estão em processo de implantação com o apoio técnico do Fazendo Justiça. 

"As audiências concentradas, especialmente em razão da participação de todos os envolvidos, são importantes para que as situações de vulnerabilidade possam ser identificadas e para que adolescentes e suas famílias sejam encaminhados para as redes de proteção", explica o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ (DMF/CNJ), Luís Lanfredi."É fundamental que o Poder Judiciário adote medidas de aproximação das unidades socioeducativas, sobretudo diante do cenário de desafios nas instituições de privação e restrição de liberdade, e a implementação das audiências concentradas é uma ótima ferramenta nesse sentido", aponta o  juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF, Edinaldo César Santos Júnior. 

Para a coordenadora da Unidade de Governança e Justiça para o Desenvolvimento do PNUD no Brasil, Moema Freire, a audiência concentrada é uma oportunidade importante para fortalecer a aproximação do Estado desses adolescentes, de seus familiares e da comunidade. "Esse contato é fundamental para a escolha dos caminhos a ser trilhados, para que saibam que não estão sozinhos, são parte importante da sociedade e têm um futuro repleto de potencialidades". 

Após reuniões técnicas com a equipe do programa Fazendo Justiça para operacionalizar a implementação das audiências concentradas, magistradas e magistrados têm acesso a documentos desenvolvidos no contexto do programa que detalham a metodologia, como o Manual sobre Audiências Concentradas para Reavaliação das Medidas Socioeducativas de Semiliberdade e Internação. Também são realizados intercâmbios entre equipes técnicas para troca de experiências e esclarecimento de dúvidas. "Em linhas gerais, as audiências trazem a rede toda para o debate e mostram que esses adolescentes também são público dos serviços e precisam ter seus direitos garantidos com prioridade absoluta, como determina a nossa Constituição Federal", resume a coordenadora técnica do eixo Socioeducativo do programa Fazendo Justiça, Fernanda Givisiez.

O Fazendo Justiça incide em desafios estruturais no campo socioeducativo e também no campo penal com 29 ações simultâneas em andamento [LINK: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/fazendo-justica/principais-acoes/] e atua de forma alinhada aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O maior foco está no ODS 16, que estabelece a necessidade de garantir acesso à justiça a todas as pessoas, especialmente àquelas em situação de vulnerabilidade, como é o caso de adolescentes no sistema socioeducativo.

 

Fortalecendo a rede de proteção

A reavaliação das medidas socioeducativas está estabelecida na lei (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12594.htm), que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), e a determinação é para que seja realizada no máximo a cada seis meses, a partir de análise do relatório produzido pela equipe técnica sobre o desenvolvimento do adolescente no cumprimento do Plano Individual de Atendimento (PIA). O ideal é que as audiências concentradas sejam realizadas a cada três meses. "Avaliar um relatório, produzido por uma equipe sobre alguém que não conheço é diferente de me sentar durante uma audiência e poder dialogar sobre a medida", argumenta a juíza da Vara de Adolescentes de Londrina (PR), Claudia Catafesta.

Em um momento anterior à audiência, é realizado um levantamento das instituições que compõem a rede local de atendimento, que são chamadas a conversar. Durante essa reunião preparatória, é possível alinhar objetivos, identificar responsabilidades, traçar planos e assumir coletivamente compromissos formais em favor do adolescente. "Nós falamos em sistema de justiça, sistema socioeducativo, família, sistema de meio aberto… geralmente são peças soltas. O fato de estar todo mundo junto numa audiência, conversando, faz com que se percebam outras coisas. Há uma costura dessa rede, a teia vai ficando cada vez mais próxima", pontua Catafesta.

A audiência é realizada em seguida com a participação de todos os envolvidos. Ao lembrar a primeira audiência concentrada que realizou, em 2021, a juíza titular de execução de medidas socioeducativas em Macapá (AP), Laura Costeira, conta que a experiência foi diferente de tudo o que viveu nos primeiros anos de carreira. "Achei que ia ser rapidinho, como de costume. Começamos às 8h da manhã e só saímos às 21h. Você precisa conversar com o adolescente, a família, as equipes técnicas, isso demanda muito tempo. Agora, a cada três meses, temos uma semana inteira dedicada às audiências. A gente garante um tratamento diferenciado para cada adolescente".

Para a pedagoga Gloria Cardozo, que atua na execução de medidas socioeducativas de internação no CENSE Londrina II, o principal ganho das audiências concentradas é o protagonismo e a possibilidade de fala dos adolescentes. "Anteriormente, tínhamos apenas uma análise documental, de uma avaliação feita por pessoas adultas e só. A possibilidade dos afetados, adolescente e família, se colocarem, sem prescindir da avaliação técnica, é fundamental". 

 

Acolhimento

Para quem atua nessa política socioeducativa, realizar as audiências nas dependências das unidades socioeducativas, conforme recomenda o CNJ, é fundamental para o êxito da metodologia. "Nós vamos até a unidade, em um primeiro momento, para preparar a audiência e sensibilizar toda a comunidade socioeducativa: direção, equipe técnica, socioeducadores e adolescentes", conta o juiz da Vara Infracional de Belo Horizonte, Afrânio Nardy. "O ambiente da instituição, que muitas vezes é marcado por um tensionamento entre segurança e ações pedagógicas, se torna um espaço mais acolhedor", explica. 

O magistrado indica que essa sensibilização, conscientização e preparação das unidades para as audiências altera a dinâmica dos espaços. “A unidade começa a entender que o papel dela é excepcional, que precisa ser breve.  Que, na verdade, as construções mais potentes, do ponto de vista pedagógico, estão no sentido de fazer esse adolescente voltar para a convivência familiar e, a partir do desenvolvimento de combinados e estratégias concretas com todos os envolvidos, retomar a sua história". 

Outro ponto destacado como positivo é a aproximação do sistema de justiça da realidade da execução da medida socioeducativa, criando um espaço horizontal de escuta, além de facilitar o acompanhamento da audiência por familiares que já visitam o espaço semanalmente. Nardy conta que, depois da primeira audiência concentrada que realizou em Belo Horizonte, um adolescente que teve a medida mantida deixou a sala com a família. “A audiência fluiu de uma forma tão leve, que ele levou essa leveza para o ambiente da unidade. A dimensão do acolhimento de alguma forma se expandiu para todo o local".

 

Do vinagre para a água

"A socioeducação é incompatível com a superlotação", afirma o juiz titular da Vara de Execução de Medidas Socioeducativas da Comarca de Manaus, Luis Chaves, ao explicar como se deu o início da prática das audiências concentradas. O quadro era de 150% de ocupação nas unidades do estado quando o juiz chegou à Vara, em 2018. O uso das audiências concentradas, realizadas nas unidades, foi, em um primeiro momento, para resolver esse cenário, explica o magistrado. "Foi aí que recebemos a equipe do CNJ, que identificou nossa prática e veio conhecer. A partir daí, eles desenvolveram a metodologia", comemora.

Para Chaves, a realização das audiências é um instrumento para cumprir o que determinam o Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei do Sinase, qualificando o cumprimento da medida. "Nós conversamos, explicamos o que está acontecendo. Muda a relação do adolescente com a medida. Eles saem e não estão voltando". A partir dessas conversas, o juiz percebeu que, por vezes, a reentrada no sistema se dava por falta de acesso à alimentação. "Passei a indicar em minhas decisões que o Estado forneça duas cestas básicas por mês para as famílias de adolescentes que deixam o sistema", explica. Desde então, a taxa de reentrada na unidade Dagmar Feitosa, a maior do Estado do Amazonas, caiu de 6% para 4%. 

Há seis anos atuando na área, a atual titular da Defensoria de Medidas Socioeducativas do Amazonas, Juliana Lopes, diz que, a partir das audiências, a compreensão de adolescentes e familiares sobre o processo mudou completamente. "Passaram não só a entender, como a participar efetiva e ativamente". Ela conta que nas unidades femininas, por exemplo, os cursos profissionalizantes geralmente estavam relacionados à estética e beleza, mas, nas audiências, as adolescentes passaram a pedir o curso de mecânica. Para a defensora, a abertura de um processo humanizado de escuta alterou completamente a maneira como a socioeducação é realizada. "As audiências concentradas mudaram do vinagre para água a história do socioeducativo no Estado".