Para além da superfície

29 de April de 2020

 

Figura 1: Infográfico, Sistema de Gestão de Resíduos Sólidos de Luanda - canais comuns ©

 

Explorando a narrativa do formal / informal em 100 dias

Se nos dissessem que temos 100 dias para investigar e aprender sobre um assunto específico, poderíamos até pensar que é tempo suficiente. Afinal, são mais de 3 meses e tal. No entanto, é preciso ter em conta que, para mudar um sistema, é preciso entender o sistema. Certo?

O Sistema de Gestão de Resíduos em Angola é bastante complexo, pois opera através de um conjunto de relações, até certo ponto, frágeis, vinculadas a motivações sociais, políticas e ambientais que estão em constante mudança. Para entender completamente a mecânica, é preciso mergulhar mais fundo e tentar ver o que está para além da superfície. 

Para começar o nosso processo de pesquisa contactámos os suspeitos do costume, desde instituições estatais, até actores já conhecidos e outras conexões de senso comum. Marcámos reuniões e lentamente começámos a descascar as camadas da cebola. Percebemos rapidamente que não iríamos usar muitas vezes os dados tradicionais, como podemos chamar... E que em Angola, ainda temos um longo caminho a percorrer até recolhermos informações relevantes sobre a produção e composição dos resíduos no percurso “formal” da cadeia de gestão de resíduos, e que  se olharmos para os canais alternativos, a tarefa torna-se ainda mais complicada. 
 

É importante ressaltar que não somos defensores da narrativa binária do formal/informal por muitas razões. Principalmente porque sabemos que as coisas são bem mais complexas do que parecem, que não se trata de uma questão de “dois lados da moeda”, também porque muitas vezes essas "realidades" são muito mais interligadas e interdependentes do que muitos imaginam e são frequentemente analisadas através de uma lente de legal/ilegal, ignorando outros elementos que devem ser considerados. No entanto, em Angola, é assim que a estória é frequentemente contada e essa narrativa binária é usada para enquadrar as discussões sobre desenvolvimento, tanto na arena política como nas conversas quotidianas e em ambientes sociais. Desta forma, é com base nisto que vamos estruturar este blog e tentar enquadrar o que aprendemos sobre o sistema de gestão de resíduos. 
 

Para início de conversa, numa cidade onde a maioria da população vive em áreas que muitos podem considerar “informais” (não planeadas, sem infraestrutura, sem serviços básicos) e dependem de uma economia também tida como “informal” (negócios instáveis improvisados e de oportunidade, sem cobrança de impostos ou registo legal), deveríamos considerar o “informal” como a norma e não a excepção, e criar políticas a partir da norma, não da exceção. Em Luanda, o sistema de gestão de resíduos é composto por dois canais principais e existe também um terceiro canal alternativo, para o sector privado, incluindo empresas e estabelecimentos comerciais conforme apresentado abaixo (Figura1).  
 

É possível que o principal canal “formal” seja caracterizado pela recolha dos resíduos maioritariamente domésticos misturados dos contentores públicos de rua, por empresas legalmente vinculadas ao governo local por um contrato de prestação de serviços que limita a sua operação a áreas/municípios específicos. Nesse sistema, os resíduos não são diferenciados e são levados para o Aterro Sanitário, onde são pesados ​​e depositados sem tratamento ou transformação específica, segundo dados. Nos últimos anos, as empresas que prestam o serviço têm mudado com frequência, vendo-se novos concursos públicos a serem geralmente lançados quando há mudanças no mandato do governo local ao nível provincial. Com estas mudanças, o modelo de gestão de resíduos em si também sofre alterações constantes, passando de uma única empresa que actuava em toda a cidade a várias empresas diferentes que cobrem áreas limitadas. Para resistir a atrasos frequentes no pagamento sem comprometer a prestação de serviços de maneira eficaz e regular, as empresas precisam de ter a sua própria “almofada” financeira de suporte. Por outra, a área de abrangência de recolha é bastante limitada, pois muitas ruas secundárias não estão incluídas, portanto, em muitos lugares, apenas as ruas principais têm pontos de recolha com contentores. 

 

Infográfico, Sistema de Gestão de Resíduos Sólidos de Luanda - canais comuns ©

 

Recentemente, o governo estabeleceu uma taxa a ser paga pelos cidadãos como contribuição para o serviço de recolha de lixo. Esta taxa estava associada à conta de electricidade, mas a falta de adesão dos cidadãos, em função da recolha de lixo não ser eficaz na maior parte da cidade, poderá ter sido um dos motivos que levou ao fracasso do modelo, que já foi descartado. No passado, houve também um investimento significativo em infraestruturas com a construção de estações de transferência de resíduos / instalações de compra, onde os cidadãos podiam vender os seus resíduos misturados. Este modelo (2007) também falhou, mas uma vez que não pesquisámos o modelo especificamente, não podemos indicar quais as razões para tal.

O percurso “informal” para o lixo doméstico é muito mais complexo e tem início quando os catadores (adultos, idosos, crianças e jovens) passam pelos contentores públicos que contém os resíduos domésticos misturados e selecionam garrafas e pacotes de plástico, latas de alumínio, garrafas de vidro, papelão e papel, e vendem o material aos “agregadores”, que geralmente armazenam o material nos seus quintais até atingir um valor relevante para vender a empresas de reciclagem. Como não há regulamentação sobre preços, não há como garantir até que ponto os preços estipulados pelas empresas de reciclagem são justos.

Para empresas e estabelecimentos comerciais, a lei exige o licenciamento de um plano de gestão de resíduos que garanta a recolha dos resíduos por um operador privado pago directamente por contrato. Embora essa seja a lei, muitas empresas, especialmente cafés, restaurantes e lojas ainda deitam os seus resíduos nos contentores das ruas. A maioria dos operadores privados que prestam serviços de recolha privada às empresas ainda levam os resíduos misturados para o aterro. Apenas alguns os separam e enviam os materiais específicos para as empresas de reciclagem.

Falando em empresas de reciclagem, curiosamente, quando observamos o mercado actual, ficamos surpresos com a quantidade de empresas que já transformam diferentes tipos de resíduos. No decorrer do processo de mapeamento identificámos cerca de 20 empresas só em Luanda. Embora não possamos garantir que todas estejam legalmente registadas com uma licença adequada, a verdade é que estão já a contribuir significativamente para a redução do lixo nas ruas. Actualmente, é cada vez mais  difícil encontrar uma garrafa de vidro, PET, lata de alumínio, papelão ou sucata nas ruas por muito tempo. Os catadores são rápidos a recolher qualquer material com valor financeiro e com destino específico para venda.  

Tendo em conta a informação que reunimos até ao momento, podemos desenhar a cadeia de valor dos diferentes tipos de resíduos sólidos, da geração ao destino. Ao fazer isto, poderemos entender onde estão as principais lacunas e identificar o “espaço de manobra”, que é o primeiro passo para gerar uma série de hipóteses. Para o trabalho desenvolvido pelo laboratório, as hipóteses são a base para desenhar um portfólio de experimentos para testar muitas soluções possíveis. O que, por sua vez, permitirá "pressionar" simultaneamente vários botões diferentes e criar mudanças sistémicas. 

Para nós, este desafio de 100 dias abriu o caminho para continuar com o mapeamento, incluindo ainda muitos aspectos a serem explorados para reunir mais evidências. Ainda há a necessidade de obter o histórico de recolha de resíduos das famílias e monitorar a quantidade de resíduos gerados, a sua composição e a sua jornada, como também entrevistar diferentes catadores para gerar perfis e saber mais sobre as suas necessidades para direcionar e analisar tendências. Pretendemos também mapear e localizar pontos agregadores para relacionar a sua localização à oferta e procura, tal como observar as condições de armazenamento nos pontos agregadores para entender as necessidades. Por outra, também, registar as transacções e os preços para entender melhor a cadeia de valor de diferentes tipos de resíduos para uma possível regulamentação.

Enfim, as possibilidades são muitas e não estamos a sugerir que a solução esteja no “informal”.  Apenas estamos a dizer que, quando algo já está a adicionar valor espontaneamente sem qualquer apoio formal, devemos aprender algo com isso para melhorar a situação actual. À medida que avançamos para o nosso segundo ciclo de 100 dias, que continua a ser a exploração do ecossistema de gestão de resíduos. Ainda que ao continuarmos assim, iremos  aumentar ainda mais o nosso conhecimento nesta matéria, contudo,  desta vez esperamos incorporar experimentação no processo: testando hipóteses para abordar algumas das lacunas já identificadas. Os testes podem ser uma maneira de ver o que funciona e o que não funciona, mas também uma óptima forma de aprender mais sobre o problema, gerando, possivelmente, um portfólio de soluções dentro deste primeiro desafio: gestão de resíduos.

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