Estado presente

O fortalecimento da proteção social nas audiências de custódia

PNUD Brasil
6 min readAug 8, 2023
Crédito — Isabella Santos Lanave

Tiago*, de 24 anos, diz ser uma pessoa desconfiada em razão de sua história de vida e dos muitos estigmas já sofridos — inclusive por parte do Estado — desde que se envolveu com o tráfico de drogas aos 12 anos de idade. “Ninguém vê o agora, só olham o histórico, o que você fez. Se eu vou comprar pão já vão me parar, já sabem quem sou e por onde eu passei”, conta. Recentemente, foi atendido pelo Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec) em Minas Gerais, no sudeste brasileiro. As Apecs são serviços mediados pelo Judiciário para pessoas que acabaram de ser presas, com participação voluntária, e estão em funcionamento em 23 unidades da federação com apoio do programa Fazendo Justiça.

Preso em flagrante, Tiago foi recebido pela equipe multidisciplinar da Apec depois de audiência com um juiz. Afirma não ter acreditado quando a assistente social disse querer ajudá- -lo. “Ela veio pedindo pra que eu contasse tudo da minha vida. Eu disse: se eu for falar, você vai ter que me deixar ler tudo que você vai escrever”. A assistente social compartilhou o relatório e foram, aos poucos, estabelecendo uma relação de confiança.

Responsável pela gestão das Centrais de Medidas Socialmente Úteis e do Serviço de Atendimento à Pessoa Custodiada (Apec) do Tribunal de Justiça do Paraná, estado ao sul do país, Fernanda Queiroz detalha como funciona o atendimento antes da audiência de custódia, que leva cerca de 15 minutos. Um questionário padrão identifica questões emergenciais de saúde e socioeconômicas que dão importantes subsídios para esse encontro.

“Ali acaba sendo o primeiro momento que algumas pessoas têm para falar, para serem ouvidas. Por vezes as demandas são, ‘estou com frio, estou descalço’, e nós providenciamos agasalhos e chinelos. É quando também podemos fazer contato com as famílias, avisar o que está acontecendo”,

Fernanda Queiroz- Gestora da Apec do Tribunal de Justiça do Paraná

Crédito — Isabella Santos Lanave

Os técnicos, então, geram um relatório que é levado para a audiência de custódia. “Acredito que o trabalho tem bastante impacto na tomada de decisão dos magistrados. Quando subsidiamos e asseguramos que faremos o possível para promover a reinserção social, eles têm mais segurança para pensar em medidas alternativas ao cárcere”. A advogada explica que 70% dos atendidos dizem fazer uso abusivo de álcool e drogas, e pelo menos 40% estão em situação de rua. Mais de 80% das pessoas atendidas desconhecem a rede de assistência com serviços de apoio social e de saúde na região. “É um trabalho de formiguinha, mas é muito gratificante quando conseguimos, quando as pessoas voltam para contar como estão”.

A passagem pelo atendimento e o acompanhamento foram importantes para Tiago, que se classificava como uma pessoa “de pavio curto”. Nas conversas com a assistente social, teve contato com os princípios da comunicação não violenta e gostou do que aprendeu. “Ela me ensinou várias coisas, principalmente a importância da paciência e do diálogo, que eu preciso me acalmar e aprender a conversar. Tento exercitar, nem sempre é fácil. Mas percebo que se alguém tivesse conversado sobre isso comigo antes, teria evitado muita coisa na vida”.

Hoje, o jovem mora com a namorada e trabalha com carga e descarga de caminhões em uma cooperativa. “Quando vocês estiverem falando sobre isso, digam que é preciso criar um sistema de cotas de emprego para quem passou pelo sistema penal. Se convivessem com a gente um mês, veriam que somos mais humanos que muita gente por aí”, despede-se, com um sorriso no rosto. Não é coincidência que a demanda de Tiago seja também uma das frentes de ação do Fazendo Justiça, inclusive por meio de incidências para garantir cotas de emprego a esse público estabelecidas por lei.

Além do reforço à proteção de direitos e garantias, os atendimentos
realizados nas audiências de custódia contribuem com a própria segurança pública. De acordo com a juíza paranaense Ana Bartolamei, é nesse espaço que a pessoa colocada em liberdade pode esclarecer dúvidas sobre eventuais medidas cautelares, enquanto os encaminhamentos para rede de
proteção social podem criar condições para evitar o retorno a situações de criminalidade.

“A partir dos atendimentos, conseguimos visualizar com clareza que, na esmagadora maioria dos casos, pessoas que chegam na custódia têm seu primeiro encontro com o Estado na forma de Estado Penal, porque sempre ficaram às margens das políticas públicas”.

Ana Bartolamei — Juíza do Tribunal de Justiça do Paraná

Crédito — Isabella Santos Lanave

Além do uso abusivo de drogas que impacta a vida de muitos custodiados, a magistrada destaca a saúde mental como desafio para encaminhamentos sociais. “Já fiz três audiências de custódia com uma mesma mulher que não sabe quantos anos tem, nem ao certo quantos filhos… Esses casos são marcantes porque são o retrato cruel da política criminal que visa ao encarceramento e, em ambos, o atendimento da equipe Apec permitiu um olhar diferenciado para todos os atores envolvidos nas audiências”. Outro caso marcante, ela recorda, é o de um custodiado que chegou feliz na audiência porque comeu quatro pães no café da manhã do Centro de Triagem 1 de Curitiba. “Ele foi preso por suposto furto de sucata, eu relaxei a prisão em razão da insignificância, mas ele me pediu que o alvará fosse cumprido somente após o almoço”.

Crédito — Isabella Santos Lanave

Juliana* foi detida por furto de carne em Salvador, capital da Bahia, no nordeste do Brasil, quando tinha 19 anos. “Não era a primeira vez que eu estava ali em frente a um juiz. E todos falavam para mim que estavam cansados, que não acreditavam quando eu dizia que não queria aquela situação”. Na pré-custódia, Juliana foi atendida por uma assistente social do projeto Corra Pro Abraço, parceria entre o Executivo e o Judiciário que fomenta alternativas à prisão e o acompanhamento de pessoas em situação de vulnerabilidade social que passam por audiência de custódia. A iniciativa também é parceira do Fazendo Justiça.

“A assistente perguntou se eu estava bem, me ofereceu água e um lanche, começamos a conversar”, conta. O juiz, então, a encaminhou para ser acompanhada pelo projeto, onde fez cursos de rádio, design, vídeo e fotografia. Também foi jovem aprendiz e a identificação foi tão grande que recebeu uma proposta para continuar no projeto, como assistente de serviços gerais.

“Acho que o principal é que eu fui ouvida e recebi suporte. Alguém acreditou em mim, sabe? Fui abraçada para a vida. Hoje tenho outra história para contar”, resume.

Juliana — Atendida pelo projeto Corra Pro Abraço

Crédito — Isabella Santos Lanave

Estas histórias estão na publicação “Fazendo Justiça — Conheça histórias com impactos reais promovidos pelo programa no contexto da privação de liberdade”. Realizada pela equipe de Comunicação do programa Fazendo Justiça, a publicação compartilha histórias transformadas a partir do impacto positivo do programa. Para acessar o material na íntegra, clique em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/06/historias-fazendo-justica.pdf

O Fazendo Justiça é uma parceria entre a Secretária Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Todos os personagens da publicação foram ouvidos entre dezembro de 2021 e abril de 2022.

* Nomes foram trocados para preservar a identidade das pessoas https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/06/historias-fazendo-justica.pdf

Originally published at https://medium.com on August 8, 2023.

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